São João da Cruz: Homilia de São João Paulo II

14 de Dezembro, 2020 0 Por OCDS SUL

CELEBRAÇÃO DA PALAVRA EM SEGÓVIA
ATO EM HONRA DE SÃO JOÃO DA CRUZ NA VIAGEM APOSTÓLICA À ESPANHA
31 DE OUTUBRO – 9 DE NOVEMBRO DE 1982

1. “Pela grandeza e beleza das criaturas pode-se, por analogia, chegar ao conhecimento do seu Autor… Se o que os impressionou foi a sua força e o seu poder, compreendam, por meio delas, que o seu Criador é muito mais poderoso…; se, encantados pela beleza de tais coisas… reconheçam quanto é melhor do que elas o seu Senhor” (Sab 13, 5.4.3).

Proclamámos estas palavras do livro da Sabedoria, queridos irmãos e irmãs, durante esta celebração em honra de São João da Cruz, junto do seu túmulo. O livro da Sabedoria fala do conhecimento de Deus por meio das criaturas, do conhecimento dos bens visíveis que mostram o seu Artífice, do anúncio que leva ao Criador a partir das suas obras.

Bem podemos colocar estas palavras nos lábios de João da Cruz e compreender o sentido profundo que lhes deu o autor sagrado. São palavras de sábio e de poeta que conheceu, amou e cantou a beleza das obras de Deus, mas sobretudo, palavras de teólogo e de místico que conheceu o seu Autor, e que indica com surpreendente profundeza a fonte da bondade e da beleza, contristado pelo espetáculo do pecado que rompe o equilíbrio primitivo, ofusca a razão, paralisa a vontade, impede a contemplação e o amor ao Artífice da criação.

2. Dou graças à Providência por me ter concedido vir venerar as relíquias, e evocar a figura e doutrina de São João da Cruz, a quem tanto devo na minha formação espiritual. Aprendi a conhecê-lo na minha juventude e pude entrar num intimo diálogo com este mestre da fé, com a sua linguagem e o seu pensamento, até culminar com a elaboração da minha tese doutoral sobre A fé em São João da Cruz. Desde aquela época encontrei nele um amigo e mestre, que me indicou a luz que brilha na obscuridade, para caminhar sempre rumo a Deus, “sem outra luz ou guia / a não ser a que no coração ardia. / Segura guiava-me / mais certa que a luz do meio-dia” (Da poesia “Noite escura“, 3-4).

Nesta ocasião saúdo cordialmente os membros da província e diocese de Segóvia, o seu Pastor, os sacerdotes, os religiosos e as religiosas, as Autoridades e todo o Povo de Deus que vive aqui, sob o límpido céu de Castela, e também os que vieram das regiões vizinhas e de outras partes da Espanha.

3. O Santo de Fontiveros é o grande mestre dos caminhos que conduzem à união com Deus. Os seus escritos continuam sendo atuais, e em certo modo explicam e complementam os livros de Santa Teresa de Jesus. Ele indica os caminhos do conhecimento mediante a fé, porque só tal conhecimento na fé dispõe o entendimento à união com o Deus vivo.

Quantas vezes, com uma convicção que deriva da experiência, nos diz que a fé é meio próprio e correcto para a união com Deus! É suficiente citar um célebre texto do livro segundo da Subida ao Monte Carmelo: “Somente a fé é o meio próximo e proporcionado para que a alma se una com Deus… Pois, como Deus é infinito, assim ela no-1’O propõe infinito; como é Trino e Uno, no-l’O manifesta Trino e Uno… E assim, por este único meio, Deus se manifesta à alma em luz divina, que excede todo o entendimento. A alma, por conseguinte, quanto mais tem fé, tanto mais unida está com Deus” (II, 9,1).

Com esta insistência na pureza da fé, João da Cruz não quer negar que o conhecimento de Deus se alcance gradualmente a partir das criaturas, como ensina o livro da Sabedoria e repete São Paulo na Carta aos Romanos (1, 18-21; cf. Cântico Espiritual, 4, 1). O Doutor Místico ensina que na fé é também necessário desprender-se das criaturas, tanto daquelas que se percebem pelos sentidos como das que se alcançam com o entendimento, para se unir de uma maneira cognoscitiva com o mesmo Deus. Esse caminho que leva a união, passa através da “noite escura” da fé.

4. O ato de fé concentra-se, segundo o Santo, em Jesus Cristo, o qual, como afirmou o Vaticano II, “é ao mesmo tempo o mediador e a plenitude de toda a Revelação” (cf. Dei Verbum, 2). Todos conhecem a maravilhosa página do Doutor místico acerca de Cristo como Palavra definitiva do Pai e totalidade da revelação, nesse diálogo entre Deus e os homens: “Ele é toda a minha locução e resposta e é toda a minha visão e toda a minha revelação. Sobre o qual já vos falei, respondi, manifestei e revelei, dando-O a vós como Irmão, Companheiro e Mestre, Valia e Prêmio” (Subida ao Monte Carmelo, II, 22, 5).

E assim, recolhendo conhecidos textos bíblicos (cf. Mt 17, 5; Heb 1, 1), resume: “Porque ao dar-nos, como deu, o seu Filho, que é uma Palavra sua, e não há outra, tudo nos disse conjuntamente e de uma vez nesta única Palavra, e não tem mais a dizer” (ib., 3). Por isso, a fé é a amorosa busca do Deus escondido que se revela em Cristo, o Amado (cf. Cântico Espiritual, 1, 1-3.11).

Todavia, o Doutor da fé não se esquece de sublinhar que encontramos Cristo na Igreja, Esposa e Mãe, e que no magistério dela encontramos a norma próxima e segura da fé, o remédio para as nossas feridas, a fonte da graça: “E assim — escreve o Santo — em tudo devemos fazer-nos guiar pela lei de Cristo homem e da Igreja e dos seus ministros, humana e visivelmente, e por essa via sanar as nossas ignorâncias e fraquezas espirituais, pois para tudo encontraremos nela abundante auxílio” (Subida ao Monte Carmelo, 11, 22.7).

5. Nestas palavras do Doutor Místico encontramos uma doutrina de absoluta coerência e atualidade.

Ao homem de hoje, angustiado pelo sentido da existência, indiferente às vezes diante da pregação da Igreja, cético talvez diante das mediações da revelação de Deus, João da Cruz convida a uma honesta busca, que o conduza até à fonte mesma da revelação que é Cristo, a Palavra e o Dom do Pai. Persuade-o a prescindir de tudo o que poderia ser um obstáculo para a fé, e coloca-o diante de Cristo. Diante d’Aquele que revela e oferece a verdade e a vida divinas na Igreja, que na sua visibilidade e humanidade é sempre Esposa de Cristo, seu Corpo Místico, garante absoluto da verdade da fé (cf. Chama de Amor viva, Prólogo, 1).

Por isso exorta a empreender uma busca de Deus na oração, para que o homem se dê conta da sua limitação temporal e da sua vocação de eternidade (cf. Cântico Espiritual, 1,1). No silêncio da oração realiza-se o encontro com Deus e escuta-se essa Palavra que Deus diz em eterno silêncio e em silêncio tem de ser ouvida (cf. Palavras de Luz e Amor, 104). Um grande recolhimento e uma separação interior, unidos ao fervor da oração, abrem as profundezas da alma ao poder purificador do amor divino.

6. João da Cruz seguiu as pegadas do Mestre, que se retirava a orar em lugares solitários (cf. Subida ao Monte Carmelo, III, 44, 4). Amou a solidão sonora onde se escuta a música silenciosa, o rumor da fonte que mana e corre mesmo que seja noite. Assim fez em longas vigílias de oração junto da Eucaristia, esse “pão vivo” que dá a vida, e que leva até ao manancial primeiro do amor trinitário.

Não podem ser esquecidas as imensas solidões de Duruelo, a obscuridade e a nudez do cárcere de Toledo, as paisagens andaluzas da Pefiuela, do Calvário, dos Mártires, em Granada. Formosa e sonora solidão segoviana a da ermida-gruta, nos penedos das gralhas deste convento fundado pelo Santo. Aqui se consumaram diálogos de amor e de fé, até a esse último, comovedor, que o Santo confiava com estas palavras ditas ao Senhor que lhe oferecia o prêmio dos seus trabalhos: “Senhor, o que desejo é que me deis esses trabalhos para os suportar por vós, e que eu seja menosprezado e tido em pouco”. Assim foi até à consumação da sua identificação com Cristo Crucificado e da sua páscoa jubilosa em Ubeda, quando anunciou que ia cantar matinas no céu.

7. Uma das coisas que mais chamam a atenção nos escritos de São João da Cruz, é a lucidez com que descreveu o sofrimento humano, quando a alma é investida pelas sombras luminosas e purificadoras da fé.

As suas análises deslumbram o filósofo, o teólogo e até o psicólogo. O Doutor Místico ensina-nos a necessidade de uma purificação passiva, de uma noite escura que Deus provoca no crente, para que mais pura seja a sua adesão à fé, à esperança e ao amor. Sim, assim é. A força purificadora da alma humana vem de Deus mesmo. E João da Cruz foi consciente, como poucos, desta força purificadora. Deus mesmo purifica a alma até nos mais profundos abismos do seu ser, acendendo no homem a chama de amor viva: o seu Espírito.

Ele contemplou com uma admirável profundidade de fé, e a partir da sua própria experiência da purificação da fé, o mistério de Cristo Crucificado, até ao ápice do seu abandono na cruz, onde Se nos oferece, como ele diz, como exemplo e luz do homem espiritual. Ali, o Filho Amado do Pai “sentiu a necessidade de clamar, dizendo: Meu Deus, meu Deus, porque Me abandonaste?” (Mt 27, 46). Aquele foi o maior abandono, o mais desolante que tivera na sua vida. E assim, com isto, Ele realizou a obra mais maravilhosa de quantas se tivessem feito no céu e na terra durante a sua existência terrena, rica de milagres e de prodígios, obra que consiste no ter reconciliado e unido a Deus, por graça, o gênero humano” (Subida ao Monte Carmelo, II, 7,11).

O homem moderno, apesar das suas conquistas, depara também na sua experiência pessoal e colectiva o abismo do abandono, a tentação do niilismo, o absurdo de tantos sofrimentos físicos, morais e espirituais. A noite escura, a prova que faz tocar o mistério do mal e exige a abertura da fé, adquire às vezes dimensões de época e proporções colectivas.

Também o cristão e a própria Igreja podem sentir-se identificados com o Cristo de São João da Cruz, no ápice da sua dor e do seu abandono. Todos estes sofrimentos foram assumidos por Cristo no seu grito de dor e na sua confiada entrega ao Pai. Na fé, na esperança e no amor, a noite converte-se em dia, o sofrimento em alegria, a morte em vida.

João da Cruz, com a sua própria experiência, convida-nos à confiança, a deixar-nos purificar por Deus; na fé cheia de esperança e de amor, a noite começa a conhecer “o surgir da aurora”, torna-se luminosa como uma noite de Páscoa — “O vere beata nox!, Ó noite mais feliz que a aurora!” — e anuncia a ressurreição e a vitória, a vinda do Esposo que une a si e transforma o cristão: “amada no Amado transformada”.

Oxalá as noites escuras que se abatem sobre as consciências individuais e sobre as colectividades do nosso tempo, sejam vividas em fé pura; em esperança “que tanto alcança quanto espera”; em amor inflamado da força do Espírito, para que se convertam em dias luminosos para a nossa humanidade angustiada, em vitória do Ressuscitado que liberta com o poder da sua cruz!

9. Recordamos na leitura do Evangelho as palavras do profeta Isaías, assumidas por Cristo: “O Espirito do Senhor está sobre Mim, porque Me ungiu, para anunciar a Boa Nova aos pobres; enviou-Me a proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, o recobrar da vista; a mandar em liberdade os oprimidos, a proclamar um ano de graça do Senhor” (Lc 4, 18).

Também o “santinho Frei João” — como dizia a Madre Teresa — foi, como Cristo, um pobre que evangelizou com imensa alegria e amor os pobres; e a sua doutrina é como uma explicação desse Evangelho da libertação de escravidões e opressões do pecado, da luminosidade da fé que cura todas as cegueiras. Se a Igreja o venera como Doutor místico desde o ano 1926, é porque reconhece nele o grande mestre da verdade viva sobre Deus e o homem.

Subida ao Monte e a Noite escura culminam na alegre liberdade dos filhos de Deus, na participação na vida de Deus e na comunhão com a vida trinitária (cf. Cântico Espiritual, 39, 3-6). Só Deus pode libertar o homem; este somente adquire de modo total a sua dignidade e liberdade, quando experimenta em profundidade, como João da Cruz indica, a graça redentora e transformante de Cristo. A verdadeira liberdade do homem é a comunhão com Deus.

10. O texto do livro da Sabedoria advertia-nos: “se chegaram a ter luz suficiente para poderem perscrutar a ordem do universo, como não descobriram mais facilmente o Senhor dele?” (Sab 13, 9). Eis aqui um nobre desafio para o homem contemporâneo que explorou os caminhos do universo. E eis aqui a resposta do místico, que da altura de Deus descobre o vestígio amoroso do Criador nas suas criaturas e contempla antecipada a libertação da criação (cf. Rom 8, 19-21).

Toda a criação, diz São João da Cruz, está como envolvida pela luz da Encarnação e da Ressurreição: “Nesta glorificação da Encarnação do seu Filho e da sua Ressurreição segundo a carne, Deus aformoseou as criaturas não só em parte, mas poderemos dizer que as deixou revestidas completamente de beleza e de dignidade” (ib. 5, 4). O Deus que é “Beleza” se reflecte nas suas criaturas.

Num abraço cósmico que em Cristo une o céu e a terra, João da Cruz pôde expressar a plenitude da vida cristã: “Não me tirarás, meu Deus, o que uma vez me deste no teu único Filho no qual me deste tudo o que desejo… Meus são os céus e minha é a terra; meus são os homens; os justos são meus e meus os pecadores; os anjos são meus, e a Mãe de Deus e todas as coisas são minhas, e o próprio Deus é meu e para mim, porque Cristo é meu e tudo para mim” (Palavras de luz e amor, 29-31).

11. Irmãos e irmãs: quis prestar com as minhas palavras uma homenagem a São João da Cruz, teólogo e místico, poeta e artista, “homem celestial e divino” — como lhe chamou Santa Teresa de Jesus —, amigo dos pobres e sábio diretor espiritual das almas. Ele é o Pai e Mestre espiritual de todo o Carmelo Teresiano, o forjador dessa fé viva que brilha nos filhos mais exímios do Carmelo: Teresa de Lisieux, Isabel da Trindade, Rafael Kalinowski, Edite Stein.

Peço às filhas de João da Cruz, as Carmelitas Descalças, que saibam viver a essência contemplativa desse amor puro que é eminentemente fecundo para a Igreja (cf. Cântico Espiritual, 29, 2-3). Recomendo aos seus filhos, os Carmelitas Descalços, fiéis guardiães deste convento e animadores do Centro de Espiritualidade dedicado ao Santo, a fidelidade ã sua doutrina e a dedicação à direção espiritual das almas, assim como ao estudo e aprofundamento da teologia espiritual.

Para todos os filhos da Espanha e desta nobre terra de Segóvia, como garantia de revitalização eclesial, deixo estas belas recomendações de São João da Cruz que têm alcance universal: clarividência na inteligência para viver a fé: “Um só pensamento do homem vale mais que o mundo inteiro; portanto, só Deus é digno dele” (Palavras de luz e amor, 39). Coragem na vontade para exercer a caridade: “Onde não há amor, coloque-se amor e dele se há-de receber amor” (Carta, 26: a Maria da Encarnação). Uma fé sólida e entusiasta, que mova constantemente a amar de verdade a Deus e o homem; porque no fim da vida, “ao pôr do sol te examinarão no amor” (Palavras de luz e amor, 64).

Com a minha Bênção Apostólica para todos.

Convento de San Juan de la Cruz

Fonte: http://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/homilies/1982/documents/hf_jp-ii_hom_19821104_segovia.html